Lembranças de Castelo Branco...

As nuvens densas e escuras daquela tarde escondiam, lá do avião, uma cidade diferente. Num curto intervalo, Salvador havia se rasgado ainda mais em veios de "progresso" rumo ao desenvolvimento... Manchas alaranjadas por toda urbis... novos sinais de civilização.

Senti falta da cidade de outros tempos...

Da Salvador de minha infância não posso falar... pelo menos, não como um todo. Devo recordar-me do meu "cantinho"... do lugar por onde passei os primeiros longos e bons anos de existência: a minha periferia...

Lembro-me do quanto era difícil chegar lá. Isso tornava ainda mais bucólico o local. O ônibus -"marinete" como minha mãe costumava chamá-lo - anunciava sempre a sua chegada com um sibilar característico que a mim causava estranheza.

...

Castelo Branco trazia consigo um ar rural... um cheiro de mato. Havia lá uma atmosfera ainda não totalmente tragada pelo "desenvolvimento". A Salvador do final dos anos 70 passava por um intenso processo de reestruturação urbana e, permanecíamos assim - cá do nosso "cantinho" - afastados daquela perversa dinâmica ...

Usávamos a expressão "ir à cidade", quando queríamos evidenciar um deslocamento para o centro. Curioso... é como se não fizéssemos parte daquilo. Estávamos desassociados, de alguma maneira, da "lógica de metrópole" que conhecemos hoje.

...

Lembro-me de Castelo Branco anterior à ocupação desordenada. Voltava muitas vezes da escola na carroça de "Pedro Veneno" e circulava por todo o bairro até quase madrugada... Visitava a "granja" perto da rodagem de barro, que nos ligava precariamente ao bairro de Aguas Claras...

... Por vezes, topava com uma figura curiosa, encostada na esquina da rua. Vestida sempre com os mesmos apetrechos de vaqueiro... barba vistosa... suor no rosto... cantando sempre canções curiosas. Mais tarde, fui percebendo que se tratava do mestre Bule-Bule que criava seus "repentes" na porta de casa...

... Ouvia deslumbrado fantásticas estórias sobre as "caçadas mitológicas" de Castelo Branco. Ao invés de leões de tigres, os animais envolvidos eram preás, gambás, tatus, jacarés... Os mais velhos exibiam os seus troféus com orgulho, arregimentando uma multidão de pequenos curiosos que disputavam a oportunidade de provar daquelas iguarias...

Comia muita besteira. Ainda me lembro do prazer que possuía em transgredir o padrão alimentar dos meus pais. O sariguê, por exemplo, tem gosto de galinha... já a preá, um sabor nobre. Degustava tudo aquilo com prazer e medo...

Foi em Castelo Branco que avistei, pela primeira vez, um carro-de-boi. Aquele ruído perene... uníssono... que brotava do atrito da roda em movimento, rapidamente me conquistou. Daquela maneira, a visão da "granja" ficou ainda mais bucólica...

Aprendia sobre cordel e ouvia aboios de um velho vaqueiro que jurava ter organizado os cadáveres de Lampião e Maria Bonita naquela famosa foto após o massacre em Angicos...

Bons tempos...

... Hoje, Castelo Branco se perdeu em meio aos apelos da modernidade. O que temos aqui são apenas velhas lembranças...

Beijos,

Silvio.

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1 comentários:

  1. A cada texto uma redescoberta, um novo sabor, um novo deleite... vc tem a arte de adjetivar, de peculiarizar, de singularizar momentos, sensações, lembranças, recordações. Meu amigo, que sua luz se eternize e suas letras sejam atemporais...
    bjoux
    tati

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