Caruru de Sete Meninos...

.. Era sempre assim. Quando menos esperava, ao cair da tarde, íam me chamar. Saía de casa atônito... carregado de sentimentos contraditórios... o medo... a alegria. Ao chegar na residência vizinha, distante uns 200 metros, encontrava-me com outros tantos meninos da minha idade...

Tratava-se do famoso caruru dos sete meninos, do qual trago aqui lembranças profundas... Não sei por que tais lembranças me ocorreram, mas as sensações... os desejos... as imagens apareceram todos agora...

A bacia que armazenava a esperada iguaria era grande... pelo menos, para mim, naquela época. Era uma bacia de alumínio... daquelas que se lavavam roupas. Hoje, seria algo extremamente anti-higiênico. Lá, não nos lembrávamos disso... apenas ficávamos aguardando... ansiosos pelo espetáculo que se iniciara...

A nossa espectativa era acompanhada de um cancioneiro peculiar. Os mais velhos sempre balbuciavam canções estranhas aos nossos ouvidos. Eram cantigas de roda... acompanhadas por palmas... de autoria desconhecida e pertencentes ao infinito da cronologia. Mal compreendia o seu significado, mas sei que elas me alcançavam fundo... lá na alma.

A frente, num lugar qualquer da parede, ficavam as temidas imagens dos 'santos do candomblé'. Eram figuras pouco comuns... carregadas em cores vivas... 'demonizadas' por todos. Para nós, traziam uma extrema carga de preconceito e temor...

...

Era chegada a hora do repasto. Quando a dona da casa 'arriava' a bacia com o caruru, as pessoas mais velhas se afastavam do local da comilança... já sabiam o que iria acontecer...

Os mais espertos (eu não era um deles!), retiravam as 'melhores' partes do caruru, indo comê-las em outro lugar qualquer da casa. Com isso, acabavam escapando do trágico acontecimento. Eu, procurando seguir as normas de 'boa conduta' dos meus pais sempre ficava...

Iniciava-se então uma verdadeira guerra... Todos, em comemoração aos 'santos meninos', atiravam comida para os lados. Penso hoje, que o verdadeiro prazer não era a comida, e sim a perspectiva de comemoração da fartura... Era o lado mais doce da brincadeira. Saíamos lambuzados e... felizes com o acontecido.

Após a 'bizarra lambança' que durava poucos minutos... sob risos e gargalhadas... saíamos, um a um a pedir as bençãos dos mais velhos... da dona da casa e retornávamos para as nossas vidas...

... E fui me formando assim... Cercado de tradições... acompanhado por mitos... aliciado pela feliz lembrança ancestral. Depois... atingí o meio do caminho. Nele, as ilusões da racionalidade me levaram a outro lugar... Acredito estar tomando o caminho de volta...

Abração,

Silvio.




CONVERSATION

4 comentários:

  1. Um texto, um estado enxertado de preâmbulos...um anúncio...Assim foi essa lembrança, assim foi colocá-la para fora. Dessa forma desejo esse blog em sua vida, que seja prosseguido de maravilhosos partos, de partos múltiplos!!! Parabéns e siga em frente, encantando...

    Grande abraço
    Teca

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  2. A mente humana é realmente incrível... lendo seu texto lembro-me também da minha infância cercada pelas mesmas tradições e preceitos... e cheiros e fascinações e medos... seu texto me fez viajar pelos cantos mais saborosos das meninices e travessuras de criança.. que odisséia, meu amigo!!!ah! to adorando te
    RE-CONHECER
    bjos Tati

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  3. Mtas saudades de um grande amigo. Que bom transmitir pensamentos, assim transmite também o muito da sua sensibilidade...Grande abraço! Glaucy

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  4. Somos mais do que pensamos e talvez, porque não, o verdadeiro sentido seja esse...talvez o andar pra frente da vida, seja justamente conseguir chegar ao princípio, a nossa verdadeira essência. Ironicamente, caminhar pra frente nos leva cada vez mais pra trás... e não há erro nenhum... é de lá que viemos, é pra lá que devemos retornar...

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